O artigo foi escrito por Reinaldo José Lopes para o Blog VISÕES DE VIDA do G1 em agosto do ano passado. Como a discussão sobre homossexualidade tem se acentuado principalmente após o advento do famigerado BBB 10 de Globo. Vale à pena ler algo sério a respeito.
Amor entre iguais
Os animais (incluindo nós mesmos, claro) são máquinas de sobrevivência e automultiplicação tão bem azeitadas que qualquer aparente tropeço nessa lógica costuma exigir uma explicação. Afinal, só chegamos até aqui por causa de incontáveis ancestrais que praticavam com virtuosismo a arte da reprodução. Então, por que tantas pessoas – e tantos outros bichos – dedicam-se com frequência a atos sexuais que têm chance nula de desembocar em bebês? Para ser mais específico, por que a seleção natural “permite” que a homossexualidade exista e até prospere?
Não quero embutir nenhum julgamento de valor nas perguntas retóricas acima. A verdade é que a formulação de respostas precisas a elas está só engatinhando, mas já é possível esboçar uma visão de conjunto da homossexualidade no reino animal – ao menos do ponto de vista descritivo e quantitativo. E, pode acreditar, o amor entre iguais é muito mais comum do que a maioria das pessoas imagina.
Dados fascinantes sobre o tema estão num artigo recente na revista científica “Trends in Ecology e Evolution”, assinado pelo dupla Nathan W. Bailey e Marlene Zuk, da Universidade da Califórnia em Riverside. Os dois reconhecem que muita coisa ainda precisa ser mais bem explicada antes de considerarmos resolvido o enigma da homossexualidade animal, mas acham que está na hora de começar a ir mais adiante, mesmo assim. Além de entender as causas evolutivas do fenômeno, é importante esmiuçar as consequências dele para a seleção natural, e para o conjunto da dinâmica evolutiva de uma espécie.
Para todo lado
O primeiro fato a ter em mente, no entanto, é a quantidade absurda de observações de comportamento homossexual na natureza – na casa dos milhares, segundo a busca que Bailey e Zuk fizeram na literatura especializada. “Namoro” homossexual, cópula e até “casamento” gay já foram observados em mamíferos (não diga), aves, répteis, anfíbios, insetos (!), moluscos (!!) e vermes nematoides (!!!), entre outros. Cerca de metade das interações sexuais de golfinhos-nariz-de-garrafa (Tursiops) machos são com outros machos. Até um quarto das cópulas de abutre-barbado (Gypaetus barbatus) também são de, digamos, homem com homem.
Antes de avançar na discussão, porém, vale a pena levar em conta as distinções mais sutis entre comportamento sexual, preferência sexual e orientação sexual. A última expressão, muito usada para humanos, refere-se às predisposições de longo prazo de um indivíduo, àquilo que ele “sente que é” do ponto de vista sexual, e obviamente é muito difícil de examinar em animais, que não vão poder te contar muita coisa se você puser os bichos sentados num divã.
Mas comportamentos e preferências podem ser estudados, tanto na natureza quanto em laboratório. Um exemplo é o das famosas moscas-das-frutas, ou drosófilas, disparado os bichos mais usados para estudar a interação entre genética e comportamento. Mutações nos receptores de feromônios das mosquinhas – basicamente as moléculas que reconhecem mensagens químicas transmitidas pelos feromônios – podem levar ao aparecimento de machos que cortejam outros machos ou que são bissexuais, alternando seus avanços românticos entre machos e fêmeas.
Outro tipo de inseto, a libélula Ischnura elegans, não precisa de mutações para adquirir um comportamento que chamaríamos de gay. Basta que machos sejam criados num grupo formado apenas por outros machos para que, quando expostos a fêmeas, eles ainda assim prefiram juntar os trapinhos com… machos, o que mostra o papel do contexto social na formação dos interesses sexuais do bicho.
O enigma é bem simples, na verdade: se a homossexualidade não produz filhotes, por que ela persiste? Por que os indivíduos que se interessam sexualmente pelo mesmo sexo não têm seu patrimônio genético totalmente substituído por indivíduos que só copulam com o sexo oposto?
Uma forma de entender isso, e ela até pode ser bastante válida, é levar em conta que a seleção natural sempre deixa alguma coisa passar, digamos assim. Os seres vivos não são perfeitamente adaptados – apenas bastante adaptados –, e é natural que, em cada geração, variações aleatórias levem a preferências sexuais que não são otimizadas do ponto de vista da seleção natural.
Outra maneira de ver a questão é encarar a homossexualidade como uma estratégia adaptativa complementar à heterossexualidade, e não necessariamente oposta a ela. Por outro lado, basta que um indivíduo predominantemente homossexual produza descendentes com sucesso em algum ponto da vida para que suas preferências sejam passadas adiante. Desse ponto de vista, a homossexualidade seria um subproduto da bissexualidade. É com isso em mente que os três principais cenários para explicar a homossexualidade como uma adaptação foram formulados. São eles:
1)A hipótese espartana: a prática homossexual ajuda a cimentar as relações sociais e as alianças dentro de um grupo, como ocorre entre os machos de golfinhos-nariz-de-garrafa (e como ocorria entre os bons e velhos guerreiros de Esparta, com sua barriga de tanquinho).
2)A hipótese paz e amor: o sexo entre iguais ajuda a minimizar o conflito entre indivíduos do mesmo sexo. É o caso do peixinho vivíparo Girardinichthys multiradiatus. Os machos de baixo status da espécie exibem uma mancha escura nas escamas, parecida com a que as fêmeas possuem. Assim, são menos agredidos pelos machos dominantes, que podem até cortejá-los. De quebra, isso ajuda os machos de baixo status a tentar “rapidinhas” discretas com as fêmeas de verdade.
3)A hipótese do troca-troca, ou a hipótese ateniense: antes de chegar à maturidade sexual plena, animais mais jovens podem usar companheiros do mesmo sexo como “treinadores” para o futuro ato de cópula com o sexo oposto. É o que parece acontecer com as moscas-das-frutas, em certos casos, e também com os flamingos (e era o que se dava nas relações entre homens e garotos de Atenas, onde, em geral, o ato homossexual era visto como rito de passagem para a vida adulta).
É claro que todas essas hipóteses podem ser verdadeiras, dependendo das condições de cada espécie, ou até se complementarem para explicar o comportamento homossexual. De qualquer maneira, alguns casos de “casamento gay” na natureza revelam que o sucesso reprodutivo pode, de fato, estar diretamente relacionado com a homossexualidade. Pergunte aos albatrozes do Havaí.
Numa colônia dessas aves marinhas, um terço dos casais é formado exclusivamente por fêmeas. As aves se unem numa relação monogâmica que inclui o “namoro” e o trato dos filhotes. Filhotes? Sim, porque a população tem um número relativamente baixo de machos, que também se “casam”, mas ocasionalmente pulam a cerca e fecundam fêmeas solteiras. Como é muito difícil criar bebês sem a ajuda de um parceiro, elas forjam relações duradouras com outras fêmeas. Isso parece influenciar também a taxa de “divórcio” entre os parcos machos da população: em vez de abandonar uma parceira por outra, eles mantêm a mesma fêmea “titular”, enquanto as fêmeas sem par acabam se juntando a outras para criar bebês. (E que vantagem a fêmea que não botou os ovos leva? Ora, a companheira, agradecida, pode muito bem retribuir o favor quando for a vez dela de ser fecundada por um macho.)
E nós com isso?
De novo, todos esses dados, embora fascinantes, não resolvem de forma definitiva as dúvidas que pairam sobre as origens e a natureza da homossexualidade. É claro que esse tipo de estudo tem implicações políticas e sociais, lançando um tipo diferente de luz sobre o debate a respeito do quão “natural” é a homossexualidade em seres humanos.
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