Por Alexandre Marini em 24/11/2016 in Observatório da Imprensa
Lá atrás, Immanuel Kant (1724-1804) dizia que a sociedade
era mantida autoritariamente num estado a que chamou de “menoridade”, ou seja,
a incapacidade de servir ao seu próprio entendimento, de pensar e agir a partir
de sua própria análise crítica. Em outras palavras, era como se a sociedade não
tivesse capacidade de tomar conta de si, conduzida por aqueles que tinham o
poder político, econômico e social.
No entanto, o filósofo alemão também afirmava que deveríamos
nos erguer diante disso e tentar sair do tal estado de menoridade. A forma pela
qual isso se tornaria possível? Através da crítica, interrogando as “verdades” que
nos são dadas.
De forma extremamente resumida, a crítica, segundo Kant,
seria o exercício da autonomia frente àquilo que é imposto e, portanto,
essencial à busca pela liberdade e por uma sociedade mais justa.
Bem mais tarde, Foucault formulou a seguinte questão: o que
nos tem levado à atual organização social econômica, notoriamente cheia de
problemas, após o exercício de tantas críticas durante tanto tempo? Seria a
insuficiência da razão ou haveria poder contrário demais?
Os mecanismos de coerção
Como seres notoriamente orgulhosos de sua racionalidade, a
insuficiência da razão não parece ser a opção mais adequada (por mais que
pertinente), ainda mais diante da alternativa “poder contrário demais”. Sendo
possível optar pelas duas opções, razoável escolher ambas.
Pois bem, agora, meio século depois, perguntamos: como
exercer tal crítica num tempo em que a falta de representatividade popular é gritante
em todas as instâncias do estado democrático, somado ao ensurdecedor silêncio
dos instrumentos de comunicação (referindo-se a mídia tradicional e de grande
alcance) diante das inúmeras tentativas de retirada de nossos direitos? Como
sair da menoridade que nos é imposta por decisões político governamentais e que
parecem nos excluir do jogo político, como o andamento da medida provisória de
reformulação do ensino médio ou o Projeto de Emenda Constitucional do teto dos
gastos, entre tantos outros? Como se erguer diante de um judiciário que
aparenta estar cada vez mais contaminado por posições políticas e que tem nos
mostrado possuir, em inúmeros exemplos e nas mais diversas instâncias, mais
intenção do que isenção em seus julgamentos e decisões?
É notável como a luta dos estudantes secundaristas e
universitários e suas ocupações ganhou tamanha importância mesmo não ocupando o
espaço que merece na mídia tradicional e nos debates na esfera pública: as
ocupações são o mais puro exercício da crítica e da autonomia perante a força
governamental e tem nos permitido perceber, de forma cada vez mais clara, as
conexões entre os mecanismos de coerção entre o Estado e demais poderes.
Interrogar o discurso do Estado
Para ficar somente em alguns exemplos, como não lembrar do
silêncio midiático do 4º Poder, que finge não ver aquele que já é, talvez, um
dos maiores movimentos políticos protagonizados por estudantes, ou o uso exacerbado
das forças repressoras do Estado personificado na brutalidade policial nas
escolas ocupadas, ou uso de instrumentos legais claramente abusivos, como a
ordem do juiz que permitiu que métodos e artifícios de tortura fossem
empregados para desocupação de secundaristas de uma escola estadual, além da
tentativa de individualizar e criminalizar quem ocupa, conforme solicitação e
orientação formal do próprio Ministério da Educação às instituições ocupadas,
entre tantos outros exemplos.
Mas se as mais diversas instituições demonstram estar em
pleno exercício da “arte” pedagógica, econômica e política de como nos
governar, os estudantes se permitiram e estão nos mostrando que é possível
pensar em “como não ser governado” tão passivamente e por princípios, objetivos
e formas dos quais discordamos ou julgamos injustos.
Num momento em que a PEC 55 (ex-241) é vendida como única
solução para a economia do país e a reformulação do ensino médio desconsidera o
diálogo com as partes mais interessadas (educandos e professores), posto que a
melhor solução teria sido encontrada pelo atual governo, embalada e despachada
como lei por medida provisória com pouco ou quase nada a discutir, estes jovens
e suas ocupações têm nos mostrado que é possível erguer-se e tomar o direito de
interrogar o discurso do Estado, que se impõe como verdadeiro tão somente pelo
seu poder.
Alexandre Marini é sociólogo e professor
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