REMORSO

Salvador Dali – Remorso

REMORSO
Às vezes, uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! Mais cem vidas! Com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!

Sinto o que esperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude,

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!



Bilac, Olavo, 1865 – 1918
Antologia poética / Olavo Brás Martins Bilac
Porto Alegre: L&PM, 2007 pg. 83

MEMÓRIAS DA INFÂNCIA

Salvador Dali – Memorias da Infancia

MEMORIAS DA INFÂNCIA
Quando eu era criança, acreditava em muitas coisas. Acreditava, por exemplo, que todos os homens eram bons, exceto talvez o homem do saco... aquele negro que pegava crianças, como minha mãe dizia sempre que eu queria sair à rua para brincar.
- O Homem do saco vai te pegar!!!
Acreditava em Papai Noel, na cegonha que trouxe meu irmão, em duendes... Ah os duendes...e sobretudo acreditava na felicidade. Eu achava que sempre seria feliz.
Os problemas, esses eram simples e passageiros: dores de barriga, de garganta, que me fez sofrer um bocado, um ou outro ferimento provocado pelos tombos e as artes castigadas a chineladas.
A infância tinha odores. O cheiro das manhas úmidas e quentes, o cheiro da terra, do cachorro, da macarronada aos domingos. Esses cheiros ainda hoje me retornam à lembrança, como se eu ainda os sentisse.
Nunca fui chegado a bolinhas de gude ou a pipas, não conseguia pô-las no ar, por isso me afastei delas...ignorei-as simplesmente. Mas me lembro dos túneis na areia, túneis que se interligavam, me lembro das brincadeiras nas “ trincheiras” cavadas na rua onde colocaram depois os grandes canos de esgoto, mas enquanto não, foram palco de grandes batalhas infantis.
Como era gostoso olhar a chuva caindo através da janela... as águas formavam corredeiras que desciam a Rua D. Matilde abaixo.

Minha casa tinha um jardim, zelosamente cuidado por meu pai, onde predominava a grama inglesa e pés de buchinho e um quintal, mais tarde todo cimentado onde pinduca, um cachorro malhado que foi nossa companhia por 14 anos corria em volta alucinado quando meu pai chegava do trabalho.

À noite, quando minha mãe concedia em ler para mim, era um êxtase . Lembro-me das fábulas de Ezopo, mas , sobretudo, de Monteiro Lobato: Caçadas de Pedrinho era minha história predileta. Adorava ficar imaginando aqueles meninos metidos naquelas aventuras...a caça à onça pintada... os preparativos da expedição cuidadosamente planejados em seus detalhes instigavam minha curiosidade até o limite. Um gênio Monteiro Lobato. Mais tarde a adaptação de seus contos para a TV os popularizou, mas, por outro lado, retirou-lhe aquela magia que é o que há de mais sagrado na infância a capacidade de imaginar a história. Na TV tudo vem pronto, você não precisa imaginar nada. Tudo é fútil e artificial.

E os álbuns de figurinhas, quem não os teve? Não eram figurinhas inúteis de artistas ou jogadores de futebol. Lembro-me de um álbum sobre o sistema solar e as eras geográficas da terra. Eram figurinhas dos planetas, dos animais pré-históricos, figurinhas que imaginavam o ambiente terrestre a milhões de anos. Em uma página as figurinhas se combinavam compondo um enorme sistema solar completo com os planetas nas suas devidas proporções.
Lembro-me também das campanhas políticas. Numa delas meu pai trouxe para casa um quebra cabeças do mapa do Brasil. Na frente montava-se o mapa com todos os estados e capitais, no verso a figura do candidato ao senado, nunca esqueci seu nome, apesar de ser criança: Auro de Moura Andrade. Que diferença das campanhas porcas de hoje, das baixarias e mentiras sórdidas. Não que não houvesse isso naquela época, mas havia algo diferente. Éramos pobres, não tínhamos refrigerantes todo o dia, apenas aos domingos e nem todos. Alias que dias maravilhosos eram os domingos. Pelo rádio às tardes a voz de Fiori Giglioti ecoava em todas as casas

-Torcida brasileira.....calorosamente boa tarde.
- Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo.
E a narração esportiva tinha don de poesia nos momentos de bola parada que permitia comentários como:
-O Sol se esparrama sobre o verde do estádio torcedor do Brasil
E ao final da partida:
- Crepúsculo de jogo, fecham-se as cortinas e termina o espetáculo.
Não devíamos ter saudades do passado. Na realidade procuro fugir dele. Quando volto ao bairro em que cresci sinto uma angústia muito grande, um tristeza enorme. Nada restou...
O passado foi demolido...como um Cinema Paradiso, e o que ficou no lugar parece tão artificial, não me pertenço, ou melhor, eu não pertenço mais a aquele lugar. O tempo o tomou de mim, o tempo toma tudo de mim até que não satisfeito me levará também a vida.
O passado só ficou dentro de mim nas sensações guardadas na memória, na música que me trás de volta as impressões e o cheiro daquela época. Sinto falta da sensação de segurança (sei que era ilusória, mas acreditávamos) e da simplicidade daquele mundo (isto é verdadeiro) que ficou para trás Um mundo que sempre foi inquietante e perigoso, havia a guerra fria, mas para nós crianças, era um mundo maravilhoso. Oh! What a Wonderful World !

BERNARDO

Carolina


Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.


Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.


Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.


Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Machado de Assis, 1906