Cada sociedade vê a figura do Criador à sua maneira. Cada pessoa até. Para Einstein Deus era as leis que governam o tempo e o espaço – a natureza em sua acepção mais profunda. Para os ateus Deus é uma ilusão. Para o papa Bento 16, é o amor e a caridade.
Toda cultura humana já teve seu Deus. Seus deuses na maioria dos casos. Os deuses eram uma mistura de humanos, animais e forças sobrenaturais.
Mas isso mudou. Deus ganhou letra maiúscula na cultura ocidental. Os panteões divinos acabaram. Deus tornou-se único. É o Deus da Bíblia, Javé, o criador da luz e da humanidade. Mas Javé não surgiu pronto no imaginário humano. Ele é fruto de fatos históricos que aconteceram antes de a Bíblia ter sido escrita.
A espiritualidade faz parte de nossos instintos. No início, cada fenômeno da natureza representava as intenções de alguma divindade. É como acontece, ainda hoje, nas tribos que estão no estágio de coletores e caçadores. Entre os índios Tupis, por exemplo, os trovões são a raiva do deus Tupã.
Obras de arte de 30 mil anos atrás dão outra pista sobre essa espiritualidade primitiva – que podemos chamar de “infância da idéia de Deus”. Elas mostram seres que misturavam características humanas e animais. Para eles não havia uma separação rígida entre o mundo dos humanos, dos animais e dos espíritos. Seria possível transitar entre essas esferas se você possuísse o conhecimento correto e, em tese, qualquer falecido, seja pessoa, seja bicho, pode ter um papel parecido com o que associamos normalmente a um Deus.
Com o surgimento da agricultura, há uns 10 mil anos, no Oriente Médio, surgem as primeira cidades e com ela a espiritualidade humana progrediria junto. Acabaria bem mais centrada nas pessoas que na natureza selvagem.
Há sinais de que ancestrais mortos eram as grandes entidades com status divino nessas primeiras cidades. Os habitantes de Jericó, por exemplo, enterravam os seus mortos, mas guardavam o crânio, que era recoberto de gesso e tinta, simulando o rosto humano. Assim preparada, a caveira servia de oráculo doméstico – uma espécie de Deus particular para cada família.
Com o surgimento da escrita, os Deuses ficaram bem mais sofisticados. Apareceram personagens como os habitantes do Olimpo, na mitologia grega. Eles ganharam personalidade e biografias complexas.
Assim surgiu Javé. No início era só mais um Deus entre outros de sua região. Arqueólogos supõem que essa região seja no noroeste da atual Arábia Saudita. A própria Bíblia é uma fonte de pesquisa. O Pentateuco, os 5 primeiros livros da Bíblia, foi finalizado por volta de 550 A.C. mas a textos ali de 1000 A.C. Os autores dos primeiros textos da Bíblia viviam na antiga Canaã – uma região do Oriente Médio onde hoje estão Israel, os territóios palestinos e partes da Síria e do Líbano. Ali se formaram algumas das primeiras civilizações da história a 10.000 anos. Por volta de 1000 A.C. estava dividida entre israelitas, hititas, jebedeus e outras. Apesar das rivalidades, todas tinham culturas parecidas. Reverenciavam o mesmo panteão de deuses mas Javé não era um deles. Uma possibilidade é que nômades do deserto teriam se incorporado às tribos israelitas trazendo o novo deus com eles.
Quem eram as divindades que compunham o panteão dos deuses cananeus? Havia o pai dos deuses e dos homens o idoso, bondoso e barbudo EL, sua esposa Asherah, deusa da vegetação e da fertilidade, a filha dos dois Anat, deusa do amor e o filho adotivo do casal, Baal, deus da guerra e da tempestade. O novo deus, Javé, com sua personalidade forte aos poucos vai se impondo sobre os outros deuses cananeus, ganhando espaço na mitologia israelita.
É difícil dizer a que período da história israelita corresponde o momento em que Javé se impõem sobre os deuses cananeus. Isso deve ter ocorrido com a consolidação de Israel como povo distinto dos demais cananeus.A adoração de uma divindade unicamente israelita pode ter emergido como um elemento chave nessa consciência nacionalista dos ancestrais dos judeus. O que parece ocorrer é que Javé vira uma mistura de El e Baal.
Javé e Baal estão associados a tempestades, vulcões, fogo e terremotos, ambos são guerreiros invencíveis que habitam o alto das montanhas. Baal vive no lendário monte Zafon, Javé, no Sinai. Só que Javé vai muito além das intervenções típicas de Baal no mundo. Na mitologia israelita, sua grande vitória não é contra o mar, mas usando o mar como arma contra o faraó que tinha escravizado o povo hebreu no Egito.
A diferença em relação a Baal é que Javé seria capaz de agir não só num passado mítico, mas na própria história dos israelitas. Ele se torna literalmente “o senhor dos exércitos de Israel”, aquele que promete a vitória em batalha em troca da fidelidade religiosa do povo.
Seu grande momento estava chegando. Era a hora da virada para Javé. Ele deixaria de ser mais um deus. E viraria o Único. No mundo real, esse momento teve data: foi a reforma religiosa introduzida por Josias (649 - 609 a.C.), rei de Judá. Antes, porém, um interlúdio político.
Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio.
Josias não queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e resistir aos invasores foi uma maior centralização da vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no único deus adorado por seus súditos. Por decreto: destruindo altares a outras divindades, como El, Baal... E Asherah.
Essa expulsão definitiva de Baal do panteão explica o episódio do bezerro de ouro durante a passagem dos israelitas pelo deserto. Para quem não se lembra: o povo de Deus, cansado de esperar que Moisés volte do monte Sinai, constrói uma estátua de ouro de um bezerro (emblema de Baal). Tanto Moisés quanto Javé ficam enfurecidos, e milhares de israelitas morrem como punição pela infidelidade do povo.
As idéias de Josias marcariam para sempre a visão que temos de Deus. E mais ainda depois que esse rei acabou morto. Na geração dos filhos do monarca reformista, o reino de Judá seria riscado do mapa e Jerusalém, a capital, acabaria conquistada pela Babilônia. Mas a adversidade do povo teve o efeito oposto em sua fé. No mundo mitológico, Javé se fortalecia como nunca. Com a nação agora indefesa militarmente, era a hora de reafirmar que o deus da nação, ao menos, era todo-poderoso. Nisso os profetas israelitas diziam que só Javé tinha existência, vida e poder; os outros deuses eram meras imagens de pedra, metal ou madeira. Era nada menos que a inauguração do monoteísmo: um momento tão importante na história da espiritualidade quanto a adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano seria bem mais tarde. E era esse Javé único que iria para a Bíblia. E se tornaria a imagem de Deus no mundo ocidental.
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