O Coronel Muammar Gaddafi era recém chegado ao palco mundial, quando compareceu à reunião da Cúpula Árabe no Cairo em setembro de 1970, exatamente um ano depois de ter chegado ao poder na Líbia, à frente de golpe bem-sucedido – jovem de apenas 27 anos –, que derrubara o rei Idriss, 80.
Em uniforme militar, com revólver à cinta, o fulgurante jovem militar queria ser visto como um “Che Guevara Árabe”. Os árabes reunidos no Egito tinham a tarefa de encontrar solução para o sangrento confronto que varria Amman entre o rei Hussein e os palestinos, conhecido como o “Setembro Negro”.
Gaddafi, protegido do presidente egípcio Gamal Abdul Nasser, ostensivamente pró nacionalismo árabe, estava furioso com Hussein. Com palavras estranhamente adequadas para hoje, Gaddafi latiu que “Estamos enfrentando um louco, Hussein, que quer matar o próprio povo. Temos de mandar alguém lá prendê-lo, algemá-lo, obrigá-lo a parar com o que está fazendo e metê-lo num hospício!”
O rei Faisal da Arábia Saudita, velho e sábio, disse, calmo: “Acho que você não pode dizer que um rei árabe é louco e deve ser metido num hospício”. Gaddafi insistiu: “Mas ele é louco! Toda a família dele é louca!” -- Gaddafi falava do pai de Hussein, o rei Talal, que abdicara em 1951, por estar mentalmente doente e incapaz de governar a Jordânia.
O sábio Faisal retrucou: “Ora, talvez todos nós sejamos loucos”. Nasser intrometeu-se: “Às vezes, quando se vê o que acontece no mundo árabe, Majestade, acho que é mesmo bem provável. Sugiro que se nomeie um psiquiatra para nos examinar periodicamente e descobrir qual de nós está louco.”
Nasser morreu dias depois – e a ideia do psiquiatra perdeu-se no ar. Psiquiatra que examinasse Gaddafi em 1970, provavelmente o declararia incapaz de governar a Líbia. Jovem e ainda muito inseguro, Gaddafi recorreu a comportamento extravagante e a golpes de publicidade, provavelmente para encobrir suas complexidades e fraquezas pessoais, sobretudo na comparação com outros líderes árabes mais sábios e mais bem estabelecidos.
Gaddafi não tinha o carisma de Nasser, nem as credenciais nacionalistas de the Habib Bourgeiba da Tunísia, nem os miolos de Hafez al-Assad da Síria, ou a sabedoria do rei Faisal da Arábia Saudita. Ansioso para mostrar que estava em pés de igualdade com os demais, inventou uma malfadada associação com Egito e Síria em 1972, que jamais se concretizou; em seguida tentou uma união com a Tunísia em 1974, que rapidamente se converteu em animosidade.
Quando essas duas tentativas falharam, Gaddafi tirou o uniforme militar e passou a vestir trajes coloridíssimos, na certeza de que, se suas políticas não atraíam as atenções da mídia, as roupas coloridas e o corpo de 40 mulheres guarda-costas (ditas todas virgens), certamente atrairiam.
Em seguida, abriu seu país a todos os movimentos de resistência pelo planeta, desde que se comprometessem seriamente a “combater o imperialismo ocidental”. Em 1975, publicou trabalho de aspiração filosófica, O Livro Verde, copiado do livro de Nasser The Philosophy of Revolution e de outros livros revolucionários, como Pequeno Livro Vermelho de Mao Tse Tung. O livro do timoneiro Mao veio à luz ao longo dos anos 1964-1976; o de Gaddafi foi publicado em três volumes, entre 1975 e 1979.
Quando ficou claro que os líbios não estavam levando a sério o Pequeno Livro Verde, criticado como compilação de bobagens, Gadaffi tornou obrigatória a leitura de seu livro nas escolas, universidades, livrarias, TVs, rádios e, para que fosse acessível a todos os estrangeiros que o visitassem em Trípoli, mandou traduzir o livro para vários idiomas. Não parou nisso: o verde foi convertido em cor oficial da Líbia.
Gaddafi então decidiu “abraçar” a causa palestina, e abriu as burras de dinheiro, pródigo, para Yasser Arafat, então líder dos palestinos. Quando Arafat recusou-se a perseguir e assassinar opositores de Gaddafi fora da Líbia, Gaddafi imediatamente se tornou seu inimigo, expulsou os palestinos que viviam na Líbia, fechou todos os consulados e escritórios de representação de palestinos e cortou os subsídios.
Em 1995, outro êxodo forçado de palestinos, quando ameaçou extraditar “um milhão de palestinos”, sem se preocupar com o que lhes acontecesse, para castigar Arafat por ter assinado os acordos de Oslo com os israelenses. O fato de estar perseguindo palestinos – a vaca sagrada intocável do nacionalismo árabe – não perturbava Gaddafi; tampouco o perturbava a evidência de que estava repetindo o que o rei Hussein fizera aos mesmos palestinos em 1970. Continuava a insistir que seu estado do bem-estar estava comprometido, de corpo e alma, com os palestinos.
Ao longo dos últimos 41 anos, Gaddafi tenta ocupar o espaço grande demais para ele, de Nasser, que morreu um ano depois de o coronel líbio tomar o poder. Gaddafi viu a paz de Anwar al-Sadat em 1979 com Israel como oportunidade caída do céu para convertê-lo em padrinho do nacionalismo árabe, mas foi derrotado nessa empreitada por Assad da Síria, que assumiu aquele cetro, depois de Nasser.
Dando-se conta de que os arredores árabes pareciam inexpugnáveis para ele, Gaddafi começou a apoiar movimentos de libertação e rebeldes na África Ocidental, principalmente em Sierra Leone e na Libéria. Declarou que a Líbia seria mais africana que árabe. Nos anos 1980s, Gaddafi surgiu para o mundo como firme opositor do presidente Ronald Reagan dos EUA; e Reagan rotulou-o de “o cachorro louco do Oriente Médio”.
Em março de 1982, os EUA declararam proibida a importação de petróleo da Líbia e a exportação de tecnologia dos EUA para a Líbia. Em abril de 1986, os EUA interceptaram mensagens da Embaixada da Líbia em Berlim Oriental, sugerindo envolvimento dos líbios na explosão da discoteca La Belle, tristemente famosa depois da explosão.
Reagan ordenou bombardeio massivo de cidades líbias, como retaliação, que levou à morte de milhares de civis, inclusive de uma filha adotiva de Gaddafi, Hanna. Gaddafi. Disparou dois mísseis Scud contra barcos da Guarda Costeira dos EUA atracados perto de uma ilha italiana, que caíram no mar e não causaram nem danos nem vítimas.
Suas relações com a Grã-Bretanha também sofreram, quando uma policial britânica foi morta na calçada em frente da Embaixada da Líbia em Londres, quando monitorava manifestações anti-Gaddafi. Resultado disso, as relações entre Gaddafi e Londres passaram uma década rompidas e só foram restabelecidas depois que Tony Blair visitou-o em Trípoli, em 2004.O ato provavelmente mais infame de Gaddafi foi a explosão em Lockerbie em 1988, que derrubou um avião da Pan Am (voo 103) sobre a Escócia, matando 270 passageiros inocentes. Impuseram-se sanções internacionais à Líbia durante os anos 1990s, que só foram levantadas quando Gaddafi resolveu limpar seu nome, pouco depois da derrubada de seu amigo e camarada Saddam Hussein.
Em agosto de 2003, Gaddafi escreveu à ONU aceitando formalmente a responsabilidade pelo atentado de Lockerbie, e pagou indenização de cerca de 2,7 bilhões de dólares às famílias das vítimas. Como recompensa, bandos de líderes internacionais visitaram a Líbia. O presidente Nicolas Sarkozy visitou-o em julho de 2007, seguido imediatamente depois pelo primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, em agosto de 2008; no mês seguinte, foi a vez da secretária de estado dos EUA, Condoleezza Rice.
Ao longo de 40 anos, os árabes comuns lidaram com Gaddafi como se lida com uma triste realidade da qual ninguém conseguiu livrar-se e que ninguém conseguiu mudar. Gaddafi passou por quatro reis sauditas, três presidentes sírios e três presidentes egípcios, além de cinco secretários-gerais da Liga Árabe. Sobreviveu a oito presidentes dos EUA, em vários casos, a dois mandatos, e a cinco presidentes da França.
Muitas vezes vangloriou-se de ser o “rei dos reis do Norte da África” e “o mais antigo dos reis e presidentes árabes”. Os líderes árabes jamais se orgulharam muito dele, por causa do comportamento excêntrico, mas tampouco o desafiaram, por ter sido protegido de Nasser.
Gaddafi aprendeu, à tenra idade de 27 anos, que podia fazer praticamente o que bem entendesse no mundo árabe – e nada lhe aconteceria. Nada jamais o perturbou: nenhum escândalo, nenhuma culpa por assassinatos ou crimes, qualquer embaraço por fracassos na liderança.
Tudo isso explica por que o “rei dos reis” nem piscou ao mandar atirar contra manifestantes em Benghazi e Trípoli nas duas últimas semanas, acrescentando mais quase 300 à sua lista de cidadãos líbios mortos. Contratou tribos africanas para atacar líbios, atirou de aviões contra manifestantes desarmados, contaminou a água em Benghazi e cortou todo o fornecimento de combustível, para impedir que seus opositores viajassem entre cidades líbias. Foi Gaddafi sendo Gaddafi, até algum, talvez próximo, ou aparente fim.
O terrível Gaddafi, que gosta de ser chamado de “Irmão Muammar”, disse claramente, através do filho Seif al-Islam, que não renunciará porque, se o fizer, “o imperialismo ocidental” voltará à Líbia. Lutará até o último homem, até a última mulher, e ficará no poder até que desça a cortina do último ato.
O discurso de Seif al-Islam foi montado com palavras do dicionário do pai, rescendendo à violência, força bruta, autoridade ditatorial. Tendo aprendido as lições da Tunísia e do Egito, Gaddafi não fugirá como Zine el-Abidine Ben Ali da Tunísia, nem renunciará como Hosni Mubarak do Egito.
O “Grande Irmão Muammar” tampouco se deixará depor, quando ou se multidões líbias invadirem seu palácio em Trípoli, ou aparecer general para prendê-lo. Preferirá o suicídio, à rendição.
Sami Moubayed - ed.chefe da revista Forward, Síria